Saiba antes de ler:
não sou crítico literário nem detentor da verdade maior. O texto
abaixo relata as impressões que tive após a leitura deste livro e não
traz quaisquer revelações quanto ao enredo.
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Escrito pelo americano Philip K. Dick, O Caçador de Androides*
é uma ficção científica indicada ao Prêmio Nebula de 1968, ano de sua
publicação. Foi editado no Brasil somente em 1983, um ano após o
lançamento de Blade Runner: O Caçador de Androides, adaptação
cinematográfica dirigida por Ridley Scott e estrelada por Harrison Ford.
A despeito do lapso temporal, a obra se mantém atual nas reflexões que
propõe, mas pode não agradar aos fãs do filme.
O
cenário é a Terra do futuro**, arruinada por uma guerra sobre a qual
restam pouquíssimos registros. Suas consequências, porém, estão
presentes no cotidiano: a radioatividade impregna o planeta; flora e
fauna praticamente extintas dão lugar a réplicas artificiais. Os
incapazes de se refugiar nas colônias marcianas estão fadados à
sobrevivência num ambiente miserável, inóspito e repudiado.
Insuflada
pela necessidade e pela monstruosa engenhosidade humana, a tecnologia
evoluiu e atingiu o zênite com o advento dos androides orgânicos. Feitos
à imagem e semelhança do ser humano, eles somente podem ser
distinguidos por intermédio de testes especiais de empatia, faculdade
que mal podem emular; isto representa uma ameaça, pois os androides,
tidos como mão-de-obra escrava, acabam por revoltar-se contra sua
condição.
Nesta
distopia tétrica vive Rick Deckard, caçador de recompensas de
meia-idade a serviço da polícia que é convocado para localizar e
“aposentar” androides rebeldes fugitivos de Marte. Vivendo uma crise
matrimonial e de consciência, Deckard busca conforto na aquisição de uma
ovelha legítima, um artigo de luxo. Envolvido na caçada contra sua
vontade está J.R. Isidore, um “especial” cuja vida é a própria
representação da realidade sinistra desta sociedade pós-apocalíptica.
Ainda
que livro e filme se fundamentem na mesma premissa, há diferenças
consideráveis, a começar pela caracterização do ambiente. A película
apresenta uma Terra superpopulosa, com arranha-céus decadentes, carros
voadores, e letreiros luminosos bombardeando propagandas a todo
instante. A combinação de sombra e luz traduz um clima decante e sujo,
mas ao mesmo tempo fascinante e brilhante.
No
romance, impera a sensação de desolação. O mundo é um lugar escuro,
silencioso, vazio; a visão de Dick é soturna, desesperadora, e
sobressai-se à de Scott. Este aspecto é nítido nas cenas protagonizadas
pelo marginalizado Isidore, responsável por expor o horror e a penúria
de sua subsistência ao leitor.
Duas
particularidades instigantes do cenário que foram ignoradas no cinema
se destacam: a existência de uma tecnorreligião – que, infelizmente,
surge envolta numa aura de confusão, o que talvez justifique não ter
sido abordada no filme – e a possibilidade de manipulação das emoções
humanas via estímulos elétricos.
O
autor expõe as particularidades de sua visão pessimista do futuro com
maestria, mas peca ao conduzir a ação em torno da perseguição aos
androides. Exceto por dois pontos específicos da trama, é difícil ao
leitor preocupar-se com o destino do protagonista – apesar do texto
frisar a capacidade superior dos androides, Deckard nunca parece estar
verdadeiramente ameaçado por eles.
Fãs
da obra de Scott ficarão incomodados também com a frágil descrição do
combate final contra o androide Roy, que é descrito como o mais poderoso
do grupo caçado: o confronto aqui é patético se comparado a da versão
cinematográfica, repleta de energia e poesia.
Contudo,
Dick consegue acertar em cheio no tom em alguns pontos, como quando
Deckard é confrontado com uma possibilidade aterradora que o leva a
questionar a si mesmo, num dos momentos mais bem trabalhados do enredo –
este deve ter inspirado a eterna questão acerca da natureza do
protagonista no filme, dúvida esta que logo é sanada no livro.
O
desfecho deixa a desejar: lento e inesperado, representa um verdadeiro
anticlímax, ainda que induza a muitas reflexões. Toda a história ocorre
num único dia da vida do protagonista, o que é curioso. Infelizmente,
isto reforça a sensação de que Deckard jamais esteve em perigo,
tornando-o excessivamente habilidoso e capaz em seu trabalho – e também
inverossímil.
O
valor da obra de Dick está justamente na proposição de questões
filosóficas e sua leitura proporciona um exercício de reflexão, em vista
da complexidade dos temas. Quem buscar aqui a grandiosidade
cinematográfica do filme de Scott irá se decepcionar. Não é, em
absoluto, uma leitura fácil. Pelo contrário, O Caçador de Androides é aquele tipo de livro que requer releituras com um olhar atento, maduro, para lhe decifrar os mistérios, muito comum em livros cyberpunks .